terça-feira, 8 de julho de 2008

Como escrever e dizer alguma coisa


Qual deve ser a função de cada humano? Seja médico, ciclista, advogado ou escritor nossa missão deve ser estimular “a poesia do coração ou a prosa das circunstâncias da vida (quem destacou isto foi o filósofo Hegel)”? Em miúdos, nas relações entre as pessoas nosso impulso deve ser de humanizar o outro ou de bestializá-lo?
João Gilberto Noll, escritor gaúcho de O Cego e a Dançarina, Rastros de Verão e outros, e convidado para discutir a obra de Machado de Assis na FLIP de Paraty, acredita no que outro filósofo, Marcuse, disse: “que a cultura é a negação ao que é, a suprema renúncia diante de certo hedonismo”. Cultura é um intrincado conjunto de comportamentos, significados e idéias que grupos humanos juntaram para normatizar seu modo de vida. A intenção sempre foi criar degraus de ascensão do ser humano. Viver numa caverna queimando carne e grãos era muito próximo do animal. Ao aprender como fazer utensílios e ferramentas, cultivar a terra e colher seu alimento e edificar uma casa com móveis os indivíduos se afastaram mais das bestas e esse aprendizado se tornou norma. O homem tinha ascendido mais um degrau. E assim vem acontecendo. Mas quando vemos uma família vivendo num condomínio com as mais modernas técnicas de construção, com um banheiro que está muito distante do antigo matinho que escondia o defecar e cercado de móveis de lindo designer e roupas de tecidos especiais, tão diferente da roupa mal costurada feita de pele animal, e ainda assim comete uma agressão assassina contra um filho parece que o bestial dentro de nós continua forte e tudo que aprendemos foi só um verniz vagabundo que não serve de nada e é pura hipocrisia. Então, há os que entendem que ajudar o seu irmão é fazê-lo se confrontar com a besta que ainda dorme dentro de si. Assim pensa Noll: “Eu detesto o tom psicologizante do teatro ou da literatura, tom que acentua a visão rasa do humano”. Por isto a ficção dele, como em A Fúria do Corpo, explora a inutilidade e a inoperância da família humana, este pensamento é chamado de “literatura negativa”, termo formulado por Mallarmé, outro estudioso do comportamento humano. O enredo desse livro fala “da explosão da libido no ventre da miséria”. Uma vida dolorosa. “No momento em que expando esse universo mínimo até a tensão máxima acho que a ondas propulsoras desse pontinho humano poderão despertar a paisagem adormecida, já estrangeira para o nosso entendimento”. Para ele “a atividade ficcional é como levantar o tapete para mostrar o que fizemos da vida. Se a escrita não lhe der profunda vergonha talvez ela esteja insípida demais, inofensiva”.
Para onde está indo a humanidade? Somos o ápice da evolução, o plano final de Deus? O ser humano, o filho de Deus. Ou virá outra raça? Como é que cada um de nós pode contribuir para isso? Será que devassar a podridão em nossa volta é a melhor maneira de redimir o homem? Noll diz: “O que espero de qualquer escrita é que ela me devolva o espanto que a vida viciosa roubou”.
Para quem quer escrever ele ensina seu método: “Por isso talvez eu seja um escritor de linguagem e não temático. A linguagem é que vai abrindo o texto para a narrativa e não um assunto predeterminado”. Ensina aquilo que tantos escritores falam: “o medo do papel em branco”, o que vai ser colocado naquela página. Será que consigo exprimir meus pensamentos e desejos de um modo que os outros apreciem? Ele diz: “O início da escrita é um momento de aquecimento, de tatear no escuro, até que eu encontre o tom preciso da narrativa, graças ao exercício bruto da palavra, sem medo de aqui e ali extrapolar. Depois de terminar a história retorno ao início para trabalhá-la dentro da clave geral do livro, já que até ali esse começo era apenas um laboratório de ensaios”. E afinal o que vai surgindo na página em branco só vale a pena ser lido se não for parte do racional do escritor. “A trama vai se configurando à medida que a força do inconsciente se acelera, cresce. Não tenho a menor idéia de onde a coisa vai dar”. O racional surge na fase final da escrita: “Num segundo, num terceiro ou quarto momento aí vou trabalhar o texto com certa obsessão”. Aí, o que tinha de sair já está ali, para o bem ou para o mal. “Se há alguma qualidade literária que eu preze acima de todas é de fato a surpresa, a capacidade de captar a vida naquilo que ela tem de mais arredio”. Daí, como nos livros dele, as pessoas que surgem são sacudidas pelos instintos mais baixos, mas conseguem sobreviver a eles.
É, talvez nesta “literatura negativa”, pelo espanto que ela nos causa, a gente veja melhor para onde estamos indo.