sábado, 17 de novembro de 2007


Um Coração do Tamanho do Mundo
Será que existe um número limite de seres por quem podemos ter afeição? Talvez o que queira saber é se podemos excluir um ser vivo de nossa atenção sem com isto ferir nossa consciência. No tempo antigo, quando uma mulher paria muitos filhos, costumava se dizer que “em coração de mãe sempre cabe mais um”. É só o coração das mulheres mães que tem um tamanho ilimitado para amar ou todos nós temos esta capacidade e só não a colocamos em prática? Á quantos podemos abarcar sob nossa proteção e atenção?
Ontem, vi o filme O Homem da Máscara de Ferro com di Caprio e um bando de artistas formidáveis. Num trecho D’Artagnan diz se referindo ao rei Luis XIV: “Em certo momento pensei que ele tinha um coração de rei”; querendo dizer que um verdadeiro rei (ou qualquer governante) precisa ter a capacidade de se preocupar sinceramente com todos aqueles que estão sob sua liderança. Faz lembrar a interpretação de um sonho feita pelo judeu Daniel para o rei babilônio Nabucodonosor (o construtor de uma das maravilhas do mundo antigo, os Jardins Suspensos de Babilônia - se quiser lembrar quais eram as 7 maravilhas do mundo antigo veja http://www.vivercidades.org.br/publique222/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1227&sid=14): “O Senhor viu uma árvore que cresceu muito até tocar o céu e que dava tantos frutos que o mundo todo podia se alimentar deles. Até os animais selvagens descansavam na sombra da árvore. Aquela árvore, ó Rei, é o Senhor” (Daniel 4:19-22).
Porém existem impedimentos morais e financeiros para tolher a expansão de nossas afeições. Outro dia vendo um documentário sobre a Índia ouvi um entrevistado explicar que ele não assumia uma nova esposa porque não teria como sustenta-la. Imagine um homem romântico, numa cultura que lhe permite ter quantas esposas quiser, ver uma moça pobre que lhe tocou o coração, que poderia desabrochar se fosse devidamente cuidada, e ter de passar adiante deixando-a para trás porque suas posses lhe impunham este limite.
Estou falando isto tudo porque ontem acabei com uma família porque não podia cuidar dela. Vou me explicar. Há muito tempo, saindo a passear com o poodle Malu vimos uma gata malhada num jardim que veio até a grade brincar com ela e virar de barriga para ganhar cócegas. Era uma gata de rua que pulava de quintal em quintal e era alimentada pelo pessoal da firma dona daquele jardim. Ás vezes aparecia na área lá de casa e Lili colocava leite pra ela numa vasilha. Qual não foi minha surpresa quando a encontrei na garagem mostrando os dentes para proteger os gatinhos que pariu. Bem, todos lá de casa, inclusive a neta que mora no Rio e estava passeando, decidiram que devíamos abrir nosso coração para a nova família. Comprei ração de gato, improvisei uma bandeja de tinta como caixa de areia para fazerem as necessidades e com isto arranjei mais despesa e trabalho. Quando saia com Malu pela manhãzinha levava leite e ração para os gatos e a intervalos trocava a areia da caixa. Os gatinhos eram três, um malhado que estava sempre ao lado da mãe e deixava que o pegasse e que Malu o cheirasse, e outros dois pretinhos que viviam escondidos. Passou dois meses e a casa que alugamos ficou sem inquilino e Lili começou a ficar preocupada que os gatos atrapalhassem o aluguel do imóvel. Um impedimento financeiro começou a pressionar a afeição que estávamos desenvolvendo pela família de gatos. Nesta época o gatinho malhado, mais afoito, acompanhando a mãe foi para a rua e desapareceu de nossas vistas.
A bem da verdade é importante ressaltar que nosso coração abriu-se até certo ponto. Quando ela subia até a área recebia afagos e comida, porém não lhe era permitido entrar em casa. Gostávamos dela, mas não do jeito que vivemos com Malu. Assim as afeições têm gradações que incomodam. Nestes casos sempre me lembro de uma frase do instrutor Jesus (Lucas 22:28,29): “Vocês têm estado sempre comigo nos meus sofrimentos. Por isso, vocês vão comer e beber à minha mesa no meu Reino”. Alguns recebem mais do que outros em nossos cuidados.
Ontem, apareceram moscas em nossa mesa. É demais agora ter que abrigar insetos e alimenta-los! Desci para ver o que estava atraindo-as, havia fezes dos gatos por cada canto da casa vazia. Recolhi e desinfetei tudo, a garagem também, e decidi que estava na hora de tirar os gatos dali. Liguei para o Serviço de Proteção aos Animais e fui informado que eles não abrigavam, só castravam os bichos da rua. Se pudesse levar a gata até eles ela seria castrada. Mais não podiam fazer. Pensei leva-los para um ginásio coberto aqui perto e sempre passar lá levando ração. Procurei os gatinhos para colocá-los no carro, a mãe andava em sua ronda pela vizinhança, e não os achei. Como a porta da garagem estava aberta quando limpava os fundos imaginei que eles haviam fugido. Consertei a tela do portão que dá acesso à garagem para que não se abrigassem mais lá e aguardei os acontecimentos.
Mais tarde fui levar minha neta para casa da mãe. Liguei o carro e quando sai pra fechar a porta vi um gatinho dentro da valeta coberto com a água da chuva. Tirei-o dali e fui pegar um pano para secá-lo. Pâmela segurava o bichinho que ainda se mexia. Quando voltei estava morto, devia estar escondido sob o capô do carro e o ventilador o pegou. Cheios de tristeza levamos o animalzinho e o atiramos num terreno baldio e o cobrimos. Quando voltei pra casa e guardei o carro vi o corpo inerte do outro filhote. Também tinha sido atingido pela hélice, conseguiu correr, mas morreu pouco adiante. A gata, na área miava intensamente não podendo mais entrar na garagem. Coloquei o filhote bem encostado à tela para que ela o cheirasse e o levei na bicicleta atirando o corpo num matagal. De volta, a chuva não dava trégua, ouvi a gata miando no quintal. Decidimos não lhe dar mais ração para obrigá-la a procurar comida em outros lugares e não ficar sujando nosso quintal.
Triste pensar que tudo poderia ser diferente. A gata malhada tão afetuosa, que virava a barriga pra gente fazer cócega, podia estar bem alimentada deitada no tapete da sala com os filhotes deslizando entre os pés da gente. Isto é que se chama de visão romântica na literatura. No Realismo o escritor ia contar do pano da poltrona esgarçado pelas unhas afiadas dos felinos, coco espalhado por todos os cantos e uma trabalheira com os bichos que seria demais pra nós. Agora mesmo estávamos discutindo como detetizar pulgas que devem estar infestando a garagem.
Então, volto à pergunta do princípio: Qual o limite de nossa capacidade de abrigar e cuidar de outros seres? O que faz algumas pessoas terem mais disposição que outras para isso? E penso nas crianças da rua e aquelas que sem cuidados em casa também precisam de cuidados. Quem poderá dar afeição a elas? Como descobrir o potencial que temos de ajudar e investir tempo e dinheiro nisso? Quanta culpa podemos acumular sem que isto atrapalhe a nossa mente? E como se redime todas estas dívidas, voluntárias e involuntárias? O perdão de Deus resolve tudo ou só desabilita fnossas emoções? Sei lá.

Um comentário:

manuscrito disse...

triste mesmo Vôdal...

beijo em todos.